Depois do amor, tem vírgula

Você ama e depois respira. Um tempo curto para o ar entrar e fazer o serviço no seu corpo. Você ama, respira e continua. Era isso que eu queria te dizer quando você me chamou de amor, porque eu não sou seu amor, se você não respirar antes. O amor não existe aqui. Eu não sou o amor. Eu não tenho isso. Eu sou o que restou do amor e o que restou de você. Sou suas sobras. Suas migalhas. Seu lixo. Seu esterco. Seu avesso. Seu cansaço. Seus machucados com vários esparadrapos sujos de sangue. Sou seu sangue estagnado. Sou sua pele ralada. Sou a pedra que você tropeça. Sou a doença que você pega. Sou a bactéria do seu travesseiro. Sou a bactéria do vaso sanitário que você senta. Sou a poeira por querer. Sou seu choro sem ombro. Sou sua falta de gosto. Sou sua cicatriz. Sou sua merda! Sou todas essas merdas cuidadosamente separadas em potinhos à venda no mercado da esquina da sua rua cheia de mendigos que roubam sua vista e te pedem o dinheiro que você nunca tem, porque você é pobre demais para dar seu dinheiro a eles, seu hipócrita! Eu sou tudo isso e você ainda me chama de amor. Eu não tenho voz. Não tenho nem garganta. Eu não tenho fôlego. Não tenho nem força. Eu não tenho olhos. Eu não uso óculos. Eu não sinto cheiro. Eu não tenho tato. Eu não tenho ouvido. Eu não tenho língua. Eu não tenho você. Eu não quero mais você. Eu não tenho amor. Eu não quero mais o amor. O amor me fez sangrar. O amor empola a pele e rouba resto de ar que você tem para depois que você amar. 

O amor dos dois II

Eu não sei se já consigo usar o passado pra nós. Esse é o nosso quinto janeiro. Há cinco janeiros o meu amor vive de esperança. Por aqui, chove há cinco verões. Dos calorosos e coloridos verões de sempre, esse chegou ao contrário. Soa estranho falar sobre a estação do calor assim, mas março faz hora pra chegar. Junto com a chuva, janeiro trouxe uma ilusão para afogar todos os meus verbos e suas conjugações futuras e passadas e tanto faz. Uma – mais uma? - tentativa de afogar o meu amar, o meu querer, o meu viver e tirar do fundo dessas lágrimas o meu esquecer, pra lembrar que, a partir do resto desse mês número um, o mês do recomeço, você ficou preso no início de um ano qualquer perdido pela vida. É assim, mas ainda todos os meus verbos caminham direto para sua saliva, vão de encontro com sua piscina de pele clara, fazem morada na água que encharca dos seus cabelos depois do banho e ressurgem nas gotículas de suor depois de um dia de trabalho, mas não morrem nas lágrimas. Transborda você em mim. Transborda amor. Como é patético ainda eu ter amor por você em janeiro. Em janeiro tem excesso de chuva, excesso de lágrimas, excesso de água. Não existe rua para o amor passar em janeiro. Passa sempre na televisão pra todo mundo ver que janeiro não foi feito para amar. Aí, todo mundo chora de uma vez pra acabar com a dor mais fácil. Vamos acabar logo com isso que em janeiro tudo afoga mesmo, não é? Não. O amor não afoga em janeiro. É assim mesmo. Em janeiro, todo mundo chora.

O amor, segundo nós

a gente mistura as falas. as línguas. a sua com a minha.
mistura um mundo inteiro. português. francês. inglês.
sinto o coração fall in love.
o amor passar. so far.
enquanto eu fico, ele vai
saindo pelos dedos do mesmo jeito que um dia saiu pelos poros.

O que a gente não é

eu me lembro de como você me chamava
quando me segurava pelos cabelos
ou, pelo menos, eu imaginava que você me chamaria assim
se fizesse parte disso aqui
alguns elepês na vitrola desgastada
a garrafa de vinho aberta na sala
sujando meu tapete colorido
as cinzas do seu cigarro de sempre
do meu cigarro de nunca
hoje só as cinzas do que a gente virou
depois de tanto eu imaginar
você sentindo amor por mim
fiz poesias para ninguém
me extrapolei pra você
passei dos limites
não nomeei meus parâmetros
meus contornos, que você tanto falou um dia
passei da conta na bebida
na paixão por ninguém
no sexo por acaso
me perdi entre o que sou e o que nunca fui
pra você
por você
mas continuo sendo sua
toda
sua
toda
nua
sempre que você quiser
subindo os morros da sua casa
sem parar para respirar
olhando de lado pro seu sorriso de canto
ouvindo sua voz reclamar
entrando na sua casa
vendo suas paredes - verdes, talvez
falando algo sobre sentir e você entortando
um pouco a cabeça pra me ouvir melhor
eu repito: sentir
e sinto de olhos fechados tudo que não sinto quando olho pra você
e te peço
:me leve pra onde vive o seu sentir
mas já é tarde demais
os sentimentos ficaram encostados num lugar sem acesso
o vinho acabava
a música já não rolava
e eu, como sempre, transitando entre o que sou e o que nunca fui
pra você
por você

Um dos atos

No vigésimo terceiro andar, acendo um cigarro para tentar diminuir a vida e solto toda a fumaça na sua cara lavada, descarada e sem vergonha. Te seguro pelos cabelos e te empurro pro chão, porque o chão é onde você merece ficar. Falo - em voz alta o suficiente para você me ouvir e baixo o suficiente para o mundo te conhecer: Vadia! Te xingo, te bato e cuspo na sua cara: Vadia! Como eu posso deixar você me levar assim? Chuto o resto de você pro canto da sala e te quebro em diversos pedacinhos miúdos. Não quero mais ver seu sorriso imundo, seus dentes, sentir seu hálito perfeito. Não! Piso sem dó nos pedaços do seu corpo, enquanto vou até a cozinha. Acendo outro cigarro. Você, ali no canto, toda despedaçada. Olho pra você e rio, enquanto as lágrimas caem. O nariz escorre. O copo de uísque na mão. O cigarro se apagando. A cabeça girando. Olho pra mim: rasgado, bêbado, fedido: Filho de uma puta! – e, triste, rio de mim. Olho mais uma vez pra você e te vejo segurando as pernas com medo de mim ou com medo do nosso amor sair rasteiro pela fresta da porta da sala. Ouço você em lágrimas: Fica! No fundo de nós, a música que eu não queria. A vista daqui de cima é bonita, não é, meu amor? – eu disse bêbado. Olho mais uma vez pra você e você me pede de novo. Olhos vermelhos. Olho pra baixo e sussurro: não me deixe acordar sozinho, não me deixe acordar sozinho, amor - e voo livre por aí...