Ser e os segredos II

Ô moço, não joga seus segredos no vento assim, não, porque é aí que se perde o mistério de ser.

Ser e os segredos

Ninguém ousa contar sobre o verdadeiro eu contido dentro de um corpo. Aquele segredo que não vaza pelos poros, que não exala no suor. Aquele segredo que não tem cheiro. Aquele das entrelinhas de ser. Ninguém ousa falar sobre aquilo que não se conhece. Ser é segredo de todo mundo. Inclusive, de nós mesmos.


A sujeira da lama

Ah, se essa lama em que eu me sujo se chamasse amor e se esse amor fosse louco e doce e amolecesse meus pedaços, minhas mágoas, meus rancores. Ah, eu jogaria pro alto o relógio com seus ponteiros enlouquecedores de vidas. Eu riria com os olhos pequenos dos desamores passados e inventados pelos poetas da madrugada. Olharia com graça as belezas miúdas dessa cidade imunda. Eu daria gritos. Gritos verdes. Verde e rosa. Azul e branco! Gritos de escola de samba. Se essa lama em que eu me sujo se chamasse amor, ah, eu seria outra. Seria sua, seria minha, seria duas, seria inteira, seria um par, seria ímpar. Ah! Se essa lama se chamasse amor, meu amor, a gente se cobriria com os mesmos pedaços, na mesma cama, todas as noites, noites inteiras, preguiçosas, cheias de sussurros e cheias de segredos. Ah, se ela tivesse esse nome, meu amor, meu amor! Eu me debruçaria sobre seus ombros e teria uma vista diferente da vida. Ela viria acompanhada pelo cheiro da sua pele, pelos seus braços, pelos seus pés me segurando firme. Meu amor, era assim que seria se essa lama em que eu me sujo se chamasse amor, era assim que seria... Eu juro pelas cores do meu quarto, pelos livros na estante. Eu juro por mim, aqui e agora, vazia, oca, incompleta, insignificante.

Carta

Eram seis da tarde quando você veio me buscar. Percebi que há muito tempo não ríamos uma da outra. Não misturávamos mais risos e palavras, olhos e desejos, briga e sexo. Nem perna, nem cama, nem noite, nem sono, nem saliva. Me disseram, uma vez, que almas não se separam, mas já andávamos como duas almas separadas pelo barulho da cidade e pelo silêncio entre a gente. Naquele dia, tudo foi diferente. Rimos – será que fizemos o contrário? -, andamos de mãos dadas, trocamos gestos e carinhos. Chegamos a ser um. Ventava, mas não reclamamos do tempo. Nossas conversas no fim do dia balançavam-se entre um beijo e outro, entre um aperto e outro, entre aquele momento, que parecia o início, e o fim. Sua voz delicada não saiu quando chegou a hora de pedir pra eu te esquentar, pra eu ficar pra sempre com você, pra continuar te amando. A minha voz não saiu pra te pedir pra não ficar longe de mim, pra te chamar pra ir comigo descobrir como que se faz pra prolongar o tempo quando se ama alguém que não se quer perder. Nas despedidas as pessoas não riem, meu amor. E era despedida, a gente sabia. Parecia que eu tinha acabado de levar um tapa na cara quando emudecemos. A gente se olhava como se tudo estivesse pronto pro adeus, menos nós. Era o fim. Adiamos nosso abraço com medo de ser o último. Saí com pressa de silêncio, de reconstruir minha alma. Nesse dia, fomos felizes por três horas e nunca mais.

Jazz

A melhor parte da nossa brincadeira é quando você levanta seu vestido e me chama com os olhos.
Até o tempo faz festa.
Enquanto você dança, te olho com olhos de saudade.
Seu corpo coberto por panos decorados
um sorriso emendado na canção
seus pés...
ah, seus pés
nus...
(feito como eu te queria inteira)
E você nem sabe que eu já não tenho mais por onde entrar,
que já não tem o que sair daqui,
que esse sol me sufoca
até a ponta do nariz.
Faz calor dentro de mim, meu amor.